Economia circular: Estudo analisa integração de catadores de materiais recicláveis à atual gestão de resíduos
Diante da necessidade de expansão da coleta seletiva e da logística reversa, trabalho de doutorado buscou compreender como quem exercia essa ocupação se adaptou ou passou a ser incorporada ao novo cenário.
08/08/2025|Atualizado: 09/09/2025
Pedro De Biasi, para o SVCOM
08/08/2025|Atualizado: 09/09/2025 Pedro De Biasi, para o SVCOM

A economia circular vem ganhando espaço em debates acadêmicos, políticos e empresariais. Ela propõe mudanças importantes na forma como usamos os recursos naturais, buscando reduzir a geração de resíduos, reaproveitar materiais e evitar a poluição. Mas, para que essa transformação seja justa, é fundamental incluir quem já atua há décadas nesse campo: os catadores de materiais recicláveis. Um trabalho de doutorado realizado na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC-USP) foi em busca de observar como essa integração foi ou está sendo feita em diversos países.

O trabalho “Análise da integração de catadores à gestão de resíduos para uma transição justa para a economia circular”, de autoria da doutora Ana Maria Rodrigues Costa de Castro, dentro do Programa de Engenharia Hidráulica e Saneamento, sob orientação do Prof. Dr. Valdir Schalch, contou com o financiamento da Fapesp (processo nº 2022/12729-4) e com participações dos professores Jutta Gutberlet, da Universidade de Victoria, do Canadá (UVic), e Renato Siman, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), e os pesquisadores do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Resíduos Sólidos (NEPER) da EESC: Igor Matheus Benites, Audrey Moretti Martins e Ana Paula Gonçalves.

“Apesar de estarem na linha de frente da reciclagem, os catadores nem sempre são reconhecidos e remunerados como deveriam. Além disso, muitas práticas que declaram integrá-los acabam não sendo, de fato, inclusivas, o que exige uma análise mais cuidadosa para garantir uma transição justa. A necessidade dessa análise foi a motivação para este trabalho”, afirma Ana Maria, que mapeou experiências de integração em diversos países, avaliando mais profundamente os casos do Brasil e da América do Norte. Um dos objetivos foi buscar entender se o uso do termo integração refletia melhorias reais nas condições de trabalho e vida dos catadores ou se servia somente como estratégia de greenwashing.

Detalhes do estudo

A pesquisa teve três etapas. Na primeira, houve uma revisão sistemática da literatura, onde foram identificadas 63 iniciativas de integração pelo mundo. O país com mais resultados foi o Brasil (33) e o país com menos resultados foi o Canadá (1), escolhidos para uma análise aprofundada nas etapas seguintes.

Nessa etapa, os pesquisadores analisaram experiências que se autodenominavam integradoras e propuseram uma definição baseada nos casos mais consistentes, alinhada às reivindicações históricas dos próprios catadores e da Aliança Internacional de Catadores: reconhecimento como prestadores de serviço e pagamento justo.

“Assim, com base nessa definição e nas diretrizes desenvolvidas, foi possível analisar criticamente se uma ação realmente promove integração ou se apenas se utiliza do discurso da inclusão. Por exemplo, quando uma prefeitura empresta um caminhão e um galpão para que catadores façam a coleta seletiva e a triagem sem remuneração, ela não está promovendo uma integração justa, está apenas transferindo responsabilidades sem garantir os direitos dos trabalhadores. O mesmo vale para empresas que, ao cumprir obrigações de logística reversa, doam equipamentos e usam as notas fiscais dos catadores para comprovar suas metas, sem oferecer condições dignas ou contrapartidas adequadas”, cita Ana Maria.

A segunda etapa foi realizada durante um intercâmbio da doutoranda da EESC no Community-Based Research Laboratory (CBRL) da University of Victoria (UVic), no Canadá, entre 2023 e 2024. “Nesta fase, os resultados demonstraram que, na América do Norte, os catadores enfrentam muitos desafios: não são reconhecidos oficialmente como profissionais e atuam de forma isolada. Lá, as iniciativas são lideradas por organizações de base que buscam melhorar suas condições de vida e trabalho, promover a organização coletiva e aproximar os catadores da comunidade. Essas organizações formaram a primeira aliança de catadores do Norte Global, e esta foi a primeira pesquisa a estudar esse grupo e sua atuação. Essa etapa, inclusive, foi reconhecida com um prêmio em conferência internacional da área em 2024 (ISWA YPG Online Conference)”, descreve Ana Maria.

A terceira etapa foi já no Brasil, numa análise que mostrou o país com uma integração mais avançada: a atividade é reconhecida em lei, e há diversos casos em que catadores atuam em parceria com prefeituras ou empresas. Contudo, embora haja avanços normativos recentes, como a Estratégia Nacional de Economia Circular, o Plano Nacional de Economia Circular e um projeto de lei sobre o tema, que sinalizam a valorização e inclusão dos catadores, ainda faltam orientações práticas que garantam que essa transição seja, de fato, justa para os catadores.

“Diante desse cenário e após analisar detalhadamente a integração no Brasil, construímos de forma participativa, com os catadores, pesquisadores, professores e gestores públicos, 84 diretrizes para fortalecer ainda mais essa integração e contribuir com a implementação de políticas que busquem uma transição justa”, ressalta a pesquisadora da EESC. Os casos identificados e as diretrizes propostas podem ser consultados no Painel Interativo no Site do NEPER, de forma acessível, e podem ser utilizadas por prefeituras e organizações para avaliar se suas ações estão de fato promovendo uma integração justa.

A análise dessa terceira etapa também permitiu aos pesquisadores identificarem novas formas de organização de catadores autônomos sem a entrada em cooperativas tradicionais, algo pouco explorado na literatura. Um exemplo é a COOPCASA, que é um coletivo de autônomos de São Paulo que faz gerenciamento de resíduos sob contratação, atuando em eventos como a ExpoCatadores.

Sem receita pronta

Para Ana Maria, o estudo deixa claro que não existe uma única ‘melhor forma’ de integrar catadores que sirva para todos os contextos. “Cada realidade é diferente, e qualquer proposta de integração precisa ser construída com a participação ativa dos próprios catadores, respeitando aquilo que eles desejam e reivindicam”, enfatiza.

Por essa razão, ao final da pesquisa, os autores também produziram vídeos e outros materiais ilustrativos, de modo a facilitar a disseminação dos resultados entre catadores, organizações da sociedade civil, gestores públicos, empresas e pesquisadores interessados em construir uma economia circular mais justa. Os materiais, elaborados em português e inglês, têm caráter educativo e de divulgação científica, e reúnem informações sobre as experiências analisadas nos dois contextos, com conteúdo que pode ajudar catadores e suas organizações a compreenderem e aplicarem os resultados em seus projetos, além de apoiarem tomadores de decisão e formuladores de políticas públicas.

“A pesquisa mostra que não basta mudar a forma como lidamos com os resíduos: é preciso garantir justiça para quem já trabalha com isso no dia a dia. Mais além, para construir um futuro mais sustentável, é essencial garantir que ninguém fique de fora, especialmente quem já trabalha todos os dias pela reciclagem. Ouvir os catadores e criar caminhos reais para sua integração é um passo importante para tornar a economia circular mais justa. Isso tem impactos diretos não apenas para os catadores, que poderão se fortalecer para reivindicar direitos e negociar com o setor público e privado, como também para a sociedade. Os resultados reforçam que não haverá sustentabilidade verdadeira sem justiça social”, defende Ana Maria.

Para a autora do estudo, a engenharia, especialmente quando voltada para a sustentabilidade, precisa incorporar de forma efetiva a dimensão social em seus projetos e pesquisas. “Tudo o que é planejado, construído ou gerenciado pela engenharia afeta pessoas, direta ou indiretamente, e por isso, é essencial perguntar: quem será impactado? Quem já está presente no território e possui conhecimentos que precisam ser reconhecidos e incorporados? Como evitar ou reduzir injustiças sociais? No caso da gestão de resíduos, por exemplo, isso significa reconhecer o papel dos catadores e incluí-los como parceiros nas soluções técnicas e políticas. É assim que fazemos uma engenharia mais justa, ética e alinhada aos desafios reais da sustentabilidade.”


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